A voz do Brasil

A cantora Gal Costa. Foto: Fernando Frazão. Agência Brasil. Reprodução

Gal Costa (26/9/1945-9/11/2022) é um dos meus primeiros ídolos musicais – os outros são Nelson Gonçalves, Roberto Carlos e Waldick Soriano, graças à modesta coleção de discos de meus avós (com quem morei até os sete anos), que comecei a fuçar ainda na infância. Do último, por exemplo, aos seis anos de idade eu sabia de cor e salteado as 12 faixas do repertório de um elepê intitulado “O melhor de”, de capa azul, com uma foto dele sobre um fundo cor de laranja. O disco abria com “Tortura de amor”.

Como quase todo brasileiro nascido da década de 1960 para cá, tenho Gal Costa desde sempre presente na trilha sonora da própria vida. É como se ela sempre estivesse estado ali. Em meu aniversário de um ano, por exemplo, o disco “Fantasia” (1981), lançado no ano em que eu nasci, quase furou, de tanto tocar – por causa do sucesso “Festa do interior” (Abel Silva/ Moraes Moreira).

Pode soar cabotino escrever sobre o falecimento de alguém falando de si mesmo, mas se o faço é tão somente para demonstrar a importância de Gal Costa em minha formação e perceber algo cuja ficha cai somente agora: talvez a baiana tenha sido uma das responsáveis pelo menino que adorava descobrir as novidades nos museus musicais dos parentes ter decidido virar jornalista. Entre tantos outros vinis da coleção de meus avós, por exemplo, havia dois exemplares de “A arte de”: um de Caetano Veloso e um de Gal Costa. Quando se abriam os álbuns duplos podiam se ler as letras e foi neles que aprendi a cantar, por exemplo, “London, London” (Caetano Veloso) inteira, sem nunca ter tido uma aula de inglês antes.

Corta para 1995: Gal Costa lançou “Mina d’água do meu canto”, com repertório inteiramente dedicado a músicas de Chico Buarque e Caetano Veloso – deste, foi a maior intérprete, superando inclusive Maria Bethânia, irmã do também baiano. Meu avô comprou o vinil, que tinha menos músicas que o cd (que só recentemente consegui comprar, numa de minhas andanças por sebos) e eu ficava horas ouvindo “Odara” e “Língua”, ambas de Caetano, e Gal é tão marcante que às vezes me pego pensando se não foi com ela que ouvi essas músicas pela primeira vez.

Invariável e merecidamente apontada como uma das maiores cantoras brasileiras de todos os tempos, Gal Costa faleceu hoje, de causa ainda desconhecida. Ela havia se submetido a uma cirurgia para a retirada de um nódulo em uma fossa nasal, suspendendo a agenda de apresentações. Diz-se costumeiramente que o Brasil é um país de cantoras e muitas das que se dedicaram ao ofício depois dela, confessam sua influência.

“Tropicália ou panis et circensis”. Capa. Reprodução

Com os também baianos Caetano Veloso (com quem dividiu “Domingo”, seu disco de estreia, em 1967), Gilberto Gil, Maria Bethânia e Tom Zé e o piauiense Torquato Neto – que se suicidou há exatos 50 anos, na mesma data em que Gal nos deixa –, a cantora foi uma das artífices do movimento tropicalista, que revolucionou a música popular brasileira e ajudou a cunhar a própria sigla MPB para se referir ao amplo arco de interesses que movimentou suas carreiras. Ela e o piauiense aparecem lado a lado na icônica fotografia da capa do disco-manifesto “Tropicália ou panis et circensis” (1968), arranjado por Rogério Duprat.

Com Caetano, Gil e Bethânia, em 1976, Gal Costa lançou um elepê intitulado “Doces Bárbaros”, mesmo nome do quarteto. Quando Gil completou 80 anos em junho passado, durante uma coletiva de imprensa por ocasião do lançamento de um museu virtual com sua obra e memorabilia, com mais de 40 mil itens, o compositor chegou a afirmar: “Que a gente se reúna de novo, os quatro Doces Bárbaros. Tomara que aconteça”. Infelizmente não deu tempo.

O também baiano Waly Salomão produziu o antológico “Fa-tal – Gal a todo vapor” (1971), um de seus mais festejados álbuns, em que lançou nomes como Jards Macalé, parceiro de Waly em “Vapor barato”, e Luiz Melodia, com “Pérola negra”, para citar apenas dois clássicos. Sua versão voz e violão (com arranjo de Lanny Gordin) para “Sua estupidez” (Roberto Carlos/ Erasmo Carlos) é simplesmente insuperável – pouca gente sabe, mas é da dupla o sucesso composto sob medida para a musa inspiradora, “Meu nome é Gal” (1969).

A menina que, reza a lenda, exercitava o canto em casa com uma panela na cabeça, para testar timbres, texturas e conhecer e ousar ultrapassar os próprios limites, Maria da Graça Costa Pena Burgos, seu nome de batismo, sempre teve na curiosidade uma de suas marcas. Entre as 10 músicas gravadas por Gal Costa mais tocadas nos últimos 10 anos em rádios, sonorização ambiental e casas de festas e diversão, aparecem os nomes de Caetano Veloso (“Meu bem, meu mal”, “Baby” e “Dom de iludir”), Djavan (“Azul” e “Açaí”), Ronaldo Bastos (“Chuva de prata”, parceria com Ed Wilson, e “Sorte”, com Celso Fonseca), Mallu Magalhães (“Quando você olha pra ela”), Chico Buarque (“Folhetim”), Michael Sullivan, Miguel e Paulo Massadas, parceiros em “Um dia de domingo”, cujo dueto com Tim Maia é a campeã de execuções.

O ecletismo do top 10 (a nota de pesar do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad) lista as 20 mais) confirma: a baiana tinha seus compositores prediletos, mas sempre se manteve aberta ao novo, o que explica, em alguma medida, ter sido madrinha dos citados Macalé e Melodia, mas que também permitiu à artista revelar e/ou ajudar a reconhecer o talento de nomes como Mallu Magalhães, Vitor Ramil (de quem gravou “Estrela, estrela” em 1981, mesmo ano em que o autor, então com 18 anos), Marília Mendonça (com quem gravou em dueto “Cuidando de longe”, parceria dela com Juliano Tchula, Júnior Gomes e Vinícius Poeta em “A pele do futuro”, de 2018), Junio Barreto (de quem gravou em “Estratosférica”, de 2015, “Jabitacá”, parceria dele com Lirinha e Bactéria, e a faixa-título, dele, Pupillo e Céu; além de “Santana”, em “Hoje”, seu disco de 2005) e Zeca Baleiro, que merece uma história à parte.

Em 1997, ano em que o maranhense lançava seu disco de estreia, “Por onde andará Stephen Fry?”, pela MZA Music, do Midas musical Marco Mazzola, a cantora gravaria seu “Acústico MTV” para o canal de televisão MTV Brasil, com a participação de nomes como Frejat, Herbert Vianna e Luiz Melodia. Uma das músicas do disco de estreia de Baleiro era “Flor da pele”, composta em homenagem a “Vapor barato”, a citada parceria de Jards Macalé e Waly Salomão. O maranhense e a baiana cantaram juntos um medley com as duas músicas e o resto é história.

Não tive a oportunidade de ver Gal Costa ao vivo. Alguns tiveram e não souberam aproveitar: em 2012 a artista se apresentou em São Luís, em evento para convidados na inauguração das obras de ampliação de um shopping center da capital maranhense, ocasião em que ela teve que interromper seu show de cerca de uma hora por três vezes, pedindo ao público para se calar, já que o barulho das conversas estava impedindo-a de fazer seu trabalho. Ela cumpriu seu compromisso profissional, mas ao fim da apresentação, irritada, saiu do palco sem se despedir do público.

Na recém-encerrada eleição presidencial, em nome de superar o projeto neofascista no poder, a cantora declarou apoio a Luiz Inácio Lula da Silva (PT), de quem era histórica opositora. Em uma rede social, ela celebrou a vitória: “Orgulho do nosso Brasil!!! Vamos reconstruir nossa democracia com Lula meu presidente!!!! A felicidade não cabe em mim!!!”, exclamou.

Se em “Brasil” (Cazuza/ George Israel/ Nilo Romero), em vez de “mostra tua cara” Gal Costa tivesse cantado “mostra tua voz”, certamente ouviria a si própria.

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