Salve o compositor Ernesto Cardenal!

Homem de vícios antigos conversou com Zé Modesto, parceiro do sacerdote nicaraguense recém-reabilitado pela Igreja Católica; disco de estreia do paulista – que tem parceria dos dois – completa 15 anos em 2019

Sábado passado (16), o religioso hispano-brasileiro Dom Pedro Casaldáliga completou 91 anos. Radicado em São Félix do Araguaia/MT, um dos ícones da Teologia da Libertação, ele gravou, com o também poeta Pedro Tierra e o cantor e compositor Milton Nascimento, o álbum Missa dos Quilombos (1982). Por ocasião de seu aniversário, Gisa Franco e eu tocamos uma faixa do álbum no Balaio Cultural, na Rádio Timbira AM, na data.

O sacerdote, poeta e revolucionário Ernesto Cardenal. Foto: divulgação

Ontem (18), li na coluna de Clóvis Rossi na Folha de S. Paulo, a notícia de que Mário Jorge Bergoglio, o Papa Francisco, havia reabilitado o nonagenário Ernesto Cardenal, nicaraguense, outra referência da Teologia da Libertação na América Latina. Em comum, os dois sacerdotes têm o apreço pela poesia, não são burocratas da religião. Dedicaram suas caminhadas ao povo, sobretudo o mais humilde, em busca de uma sociedade mais justa, no que se juntam a nomes como os de Leonardo Boff (1938) e Frei Betto (1944), além de mártires como Dom Oscar Romero (1917-1980), Irmã Dorothy Stang (1931-2005), Frei Tito (1945-1974) e Pe. Josimo Moraes Tavares (1953-1986).

Internado desde o início de fevereiro em um hospital de Manágua, sua cidade natal, Cardenal completou 94 anos no último dia 20 de janeiro e desde 1985 estava “sob suspensão do exercício do ministério devido a sua militância política”, “censura canônica” imposta por João Paulo II. Cardenal foi ministro da Cultura da Nicarágua no primeiro governo de Daniel Ortega (1985-1990), atual presidente da Nicarágua, eleito em 2006 e reeleito em 2011 e 2016.

Dissidente da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), o sacerdote vem sendo perseguido por Ortega desde que este reassumiu o poder em 2007 – episódio estapafúrdio foi a imposição de uma multa no valor de 800 mil dólares (o equivalente a R$ 2,9 milhões), “por supostos danos e prejuízos em disputa relacionada à posse de terrenos em Solentiname. Foi lá que Cardenal fundou sua comunidade de pescadores, camponeses e artistas primitivistas”, de acordo com o colunista da Folha. Qualquer semelhança com o que a Justiça brasileira vem fazendo com o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva não é mera coincidência.

Cardenal é considerado um dos mais importantes poetas de língua espanhola, tendo sido indicado ao Prêmio Nobel de Literatura em 2005. 40 anos antes havia sido consagrado com o Prêmio Rubén Darío, maior honraria das letras nicaraguenses. O perdão da Igreja Católica me fez lembrar de uma pérola de sua autoria.

Esteio. Capa. Reprodução

Em 2004 o compositor paulista Zé Modesto lançou seu disco de estreia, Esteio, com participações especiais de nomes como Ceumar, Ana Leite, Kléber Albuquerque, Rubi e Renato Braz, entre outros. O disco é um primor de delicadeza, um dos melhores lançados no Brasil naquela década, com sua poesia muito particular, evocando universos urbanos e rurais, festas populares, sambas, natureza, Guimarães Rosa e… Ernesto Cardenal. Depois, o historiador e compositor paulista lançaria ainda Xiló (2007) e Ao pé do ouvido (2015), também verdadeiros artigos de ourivesaria musical, o mais recente com a participação especial das caixeiras do Divino da Família Menezes, da Casa Fanti-Ashanti, de São Luís.

Do ótimo repertório de Esteio sempre me chamou a atenção, especialmente, o choro Estrelas, registrada no álbum em dueto com sua irmã Ana Leite e com o advento do grupo Sociedade do Choro, capitaneado por Carlinhos Amaral. Pela beleza do casamento de letra e melodia, pela parceria inusitada. E volta e me comover neste baile de debutante do disco, enquanto me pergunto o porquê de ter demorado tanto a ir atrás desta história.

O historiador e compositor Zé Modesto. Foto: divulgação

Zé Modesto contou com exclusividade a Homem de vícios antigos a história da parceria: “Lá pelo início dos anos 2000 eu tive acesso a um livro do Ernesto Cardenal, que se chamava As riquezas injustas [Círculo do Livro, 1982], uma antologia poética dele, eu ganhei da minha ex-mulher. Eu sempre gostei da história da revolução nicaraguense, sempre me interessei pela ideia de ter um religioso contribuindo para um governo mais popular, sempre me interessei pela vida do Ernesto Cardenal, Dom Pedro Casaldáliga, no Brasil. São poetas e ao mesmo tempo religiosos, e ao mesmo tempo engajados em causas populares, numa utopia, num sonho de uma sociedade mais justa e assim por diante. O que acontece é que eu comecei a ler o trabalho dele e gostei muito e especialmente esse poema me deu vontade de musicar”.

O compositor tece elogios às imagens poéticas do parceiro distante: “Eu gostei demais dessa imagem que ele constrói, que “o céu estrelado é como uma cidade à noite, uma cidade vista de um avião”, então as estrelas não estão no céu, as estrelas estão nas ruas, são os mercados iluminados, são todas as luzes da noite, aí ele vai dizendo, “brancas e vermelhas dos carros que vão e vem”, o branco dos faróis, o vermelho das lanternas. Eu gosto dele falar dos lugares, de night clubs, motéis, é interessante o religioso falar dessa vida profana. Essas estrelas, numa comparação ao que são as estrelas do céu, que elas também desaparecem, essas estrelas “que se queimam por nada/ o céu estrelado é um desperdício de energia”, e é tanta energia mesmo, quando a gente olha pro céu estrelado. Ele compara com as energias daqui, que se perdem no vazio das avenidas, da vida que a gente leva aqui embaixo, e compara tudo isso com uma superprodução de Clarck Gable”.

“É uma produção curta, mas que contribui tanto para um mergulho poético nesse universo das estrelas, nessa brincadeira que ele faz, do céu e da terra. Eu gosto demais desse poema e falei: “isso aqui dá um samba”. Comecei a pensar e fui cantarolando e saiu Estrelas. Foi muito legal. Mostrei a música para as pessoas, gostaram bastante, falei: “vou gravar!”, continua.

Modesto e Cardenal nunca estiveram juntos pessoalmente. Indago-lhe sobre a burocracia para a formalização da parceria, envolvendo despachos, carimbos, assinaturas, cartórios. “Eu imaginei que fosse ter um trabalho muito grande, que ia ser muito burocrático. Consegui o contato dele, entrei em contato, a secretária dele, Luz Maria Costa, me atendeu, muito simpática, ele já era velhinho, assinou, eu tenho até hoje um documento lavrado em cartório em Manágua, da autorização dele para a publicação da música. Aí eu mandei uns discos para ele, ele gostou. Foi um atrevimento meu que acabou dando certo”.

Deus abençoe o Papa Francisco, Ernesto Cardenal, Zé Modesto e qualquer um/a que se comova diante de tanta beleza! Há quem espere por milagres extraordinários, mas como dizem os poetaços Paulo Leminski e Marcelo Montenegro, “a cor amarela é um milagre”, “uma melodia linda é um milagre”. Contentemo-nos. Não é pouco!

A seguir, leia e ouça Estrelas (letra: Ernesto Cardenal; música: Zé Modesto)

Olha as estrelas no céu, olha as estrelas
Olha as estrelas do céu, olha as estrelas

O céu estrelado é feito uma cidade de noite,
uma cidade de noite vista dum avião:
as estrelas são como ruas, são mercados iluminados,
anúncios de neon, motéis, nigth clubs, cinemas e luzes
brancas e vermelhas, dos carros que vão e vêm,
dos carros que vêm e vão pelas estradas escuras
e se queimam por nada… para nada.

O céu estrelado é um desperdício de energia,
um esbanjamento de energia na perpétua noite.
Como a energia daqui perdida no vazio
nas avenidas, lojas, cafés, nigth clubs, motéis, cinemas
com uma superprodução de Clark Gable.

 

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