Entre drama e comédia, novo filme de Helena Ignez discute o Brasil

Djin Sganzerla é A moça do calendário. Frame. Reprodução

 

Grande vencedor da 41ª. edição do Festival Guarnicê de Cinema, A moça do calendário [Brasil, 2017, 86 min., classificação indicativa: 14 anos], de Helena Ignez, é, antes de tudo, um belo tributo ao cinema marginal, que tem como um de seus expoentes Rogério Sganzerla (1946-2004), autor do roteiro original, de 1987, baseado em contos de Luiz Antonio Martins Mendes, a que a diretora acrescentou suas pitadas.

Entre as referências, aparecem, por exemplo, Carmen Miranda (1909-1955) e Zé Bonitinho – personagem de José Loredo (1925-2015), que contracenou com Helena Ignez em Sem essa, Aranha (1970), de Sganzerla –, além do vestido vermelho usado por Djin Sganzerla, filha de Helena e Rogério (foram casados até a morte do diretor), que interpreta a personagem que dá título ao filme, que evoca o usado por sua mãe em Copacabana, mon amour (1970), também de Sganzerla.

O resultado é um filme fragmentário e desgraçadamente atual, sobretudo ao discutir relações de trabalho, não a única bandeira levantada por Helena Ignez, desde sempre feminista e transgressora. O fato de o filme ter levado várias estatuetas no Guarnicê, que este ano teve como tema “tElas – Protagonismo feminino no audiovisual”, diz muito sobre o atual momento vivido não só no cinema e não só no Brasil, em que se intensificam as reivindicações contra o machismo e o racismo vigentes em determinadas estruturas.

Para resumir a questão, uma fala da cineasta Rose Panet, na mesa “A mulher no cinema”, na programação do evento: “Nosso corpo não é de musa, é um corpo funcional”. Helena Ignez, atriz talentosa, transpõe a barreira e firma-se como diretora idem – no entanto, não resistindo à magia de atuar, torna-se personagem de seu próprio filme: senta-se para beber no Bar do Bigode paulista, nos arredores do Teatro Officina (que infelizmente em breve será emparedado por um empreendimento do grupo Silvio Santos), e dá o recado, levantando outra bandeira: “velhos que fumam maconha tomam menos remédio”. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra também é retratado com honestidade, algo raro em telas brasileiras – de qualquer tamanho.

Na narrativa entrecortada e no revezamento do uso de colorido e preto e branco, entre a crueza e crueldade do urbano e a delicadeza do onírico, A moça do calendário evoca O bandido da luz vermelha (1968), outro clássico da filmografia de Sganzerla – em que Ignez também atuou. Em 2010 ela lançou, como diretora, Luz nas trevas: a volta do bandido da Luz Vermelha, espécie de continuação do clássico marginal, com Ney Matogrosso no papel do bandido, originalmente interpretado por Paulo Villaça.

Helena Ignez não faz nenhum esforço para esconder a influência do ex-marido sobre sua obra: narração em off, personagens encarando diretamente o espectador e um quê de teatral – Inácio (André Guerreiro Lopes), o mecânico (filho de pai latifundiário com quem corta relações) que sonha com a moça do calendário enquanto come o pão que o diabo amassou na mão do patrão, é dançarino nas horas vagas.

É um filme sobre sonhos e contradições – a pinup inatingível é militante do MST, o que a afasta duplamente do empregado que na oficina mecânica adentra com o corpo os motores com a cabeça nas nuvens –, misto de drama e comédia, com limite tênue entre seriedade e bom humor. Uma maneira inteligente de debater o Brasil onde os memes estão perdendo o jogo para a tragédia política.

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Veja o trailer de A moça do calendário:

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