Liberdade e esperança pavimentam retorno do Cordel do Fogo Encantado

Foto: Tiago Calazans

 

Um dos mais interessantes grupos surgidos após o boom do movimento MangueBit, o Cordel do Fogo Encantado lançou três discos fundamentais – o homônimo Cordel do Fogo Encantado (2001), O Palhaço do Circo sem Futuro (2002) e Transfiguração (2006, produzido por Carlos Eduardo Miranda e Gustavo Lenza) – e retirou-se de cena.

Com referências teatrais – o nome da banda é herdado de um espetáculo de sucesso de uma companhia cujos membros do Cordel do Fogo Encantado integraram – e da literatura de cordel – escancarada também no nome do grupo, a trupe unia vigor musical e cênico, nos registros em disco e nas apresentações ao vivo.

Viagem ao Coração do Sol. Capa. Reprodução

Num tempo em que a derrocada da indústria fonográfica é cada vez mais apregoada – apesar das controvérsias – e o consumo de faixas soltas em serviços de streaming é a onda do momento, é tamanha a ousadia de um disco como Viagem ao Coração do Sol (2018), quarto título da discografia do Cordel do Fogo Encantado, por sua unidade poética e sonora (longe da monotonia), algo que por si só já mereceria loas.

O novo disco, cujo título evoca 20 Palavras ao redor do Sol (1979), estreia da paraibana Cátia de França, transforma a banda em, além de interessante, necessária, ao cantar a liberdade e a esperança, artigos raros hoje em dia. Lirinha (voz), Clayton Barros (violões e voz), Nego Henrique (percussões e voz), Emerson Calado (percussões e voz) e Rafael Almeida (percussões e voz) mantêm a força que caracterizou a sonoridade e a po/ética do grupo, com Viagem ao Coração do Sol soando como o que de fato é: um disco antenado com o atual momento do Brasil e do mundo reais e da Interlândia ficcional, terra metafórica cantada na geografia particularíssima do disco.

O cearense Fernando Catatau (guitarra tenor, samples, teclados, coral e violão de aço), da instigante Cidadão Instigado, acaba por tornar-se membro honorário do Cordel do Fogo Encantado: o músico participa de quase todas as faixas.

O disco abre com O sonho acabou (Lirinha), poema nem de longe pessimista: “O sonho acabou. E só assim saímos de dentro da Terra em direção ao Sol. O mundo agora é esse: precisamos falar com a filha do vento, a que chamam liberdade”, diz, anunciando o roteiro de Viagem ao Coração do Sol.

“Liberdade/ (Mas quem te ensinou o caminho dos poetas?)/ Liberdade amor/ (O teu nome é pouco)/ Liberdade/ (Passarinho louco)/ Aquele rio é vermelho…”, Liberdade, a Filha do Vento (Lirinha) provoca os doentes de ódio, os que espumam ao ouvir palavras como a que dá título à música e/ou vermelho.

Pra cima deles passarinho ou Semente brilhante (Lirinha/ Clayton Barros/ Emerson Calado/ Nego Henrique/ Rafael Almeida) dialoga diretamente com o Mário Quintana do célebre “eles passarão/ eu passarinho”. Tem uma carga simbólica fortíssima que nos leva a pensar “nas flores vencendo o canhão”, embora outros, ao contrário do Cordel do Fogo Encantado, não tenham conseguido manter a coerência. “Vai, vai, vai/ Mais forte vai, vai/ No seu caminho/ Pra cima deles passarinho”, atiça a letra.

Conceição ou Do tambor que se chama Esperança (Lirinha/ Clayton Barros/ Emerson Calado/ Nego Henrique/ Rafael Almeida) enaltece a força de negros, mulheres, moradores das periferias brasileiras. Impossível não pensar em Conceição Evaristo e Marielle Franco. “Ninguém apaga a tua história/ Escrita por tuas guerreiras/ Na tinta negra da memória”, proclama.

Poema declamado com trilha, Eternal Viagem (Lirinha/ Clayton Barros/ Emerson Calado/ Nego Henrique/ Rafael Almeida) é um diálogo entre homem (Lirinha) e mulher (Nataly Rocha, em participação especial), cuja letra incorpora versos de Manoel Filó, de imagem poética fortíssima – “Todo dia o sol mata a madrugada/ toda tarde vai preso novamente” – a um verso que parece servir de síntese ao momento de trevas por que passa o Brasil: “a nossa sorte é ter coragem”.

A instrumental Cavaleiro das Estradas do Sol (Clayton Barros) conta com as participações especiais de Catatau e Manassés, num diálogo intergeracional de cearenses de raro talento e habilidade nas cordas, em homenagem ao percussionista Naná Vasconcelos, produtor do disco de estreia do grupo, numa espécie de volta às origens ou fechamento de ciclo. Não esquecer o passado é chave para a construção de um futuro melhor. O Cordel do Fogo Encantado fez o seu dever de casa.

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Veja o clipe de Liberdade, a Filha do Vento (Lirinha):

4 respostas para “Liberdade e esperança pavimentam retorno do Cordel do Fogo Encantado”

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