Boca: alimento necessário

Boca. Capa. Reprodução

 

Desde seu disco de estreia, Achados & perdidos [2005], Curumin revelou-se um mago da música brasileira contemporânea: é o cara que sabe o que fazer em um estúdio, passeando pela diversidade rítmica pilotando diversos instrumentos. Seu quarto disco, Boca [Natura Musical, 2017, disponível para audição nos sites do cantor e do edital], aguardado sucessor de Arrocha [2012], é mais uma prova inconteste de seu talento.

Multi-instrumentista com presença constante em fichas técnicas de discos e shows de nomes como sua esposa Anelis Assumpção, Arnaldo Antunes e Céu, entre muitos outros, seu novo disco é alicerçado em programações eletrônicas pilotadas pelo próprio artista, que além de cantar, ainda toca bateria e teclados.

Seus fiéis escudeiros são os contrabaixistas e produtores Zé Nigro e Lucas Martins, que também se revezam entre guitarras, teclados, programações e vocais. Boca conta ainda com participações especiais de Beto Bellinati (voz em “O burguês que deu errado”, trecho do poema No slam resistência, de sua autoria), Russo Passapusso (BaianaSystem, voz em Boca pequena parte 1 e 2, de sua autoria – a primeira é de Curumin; Terrível também é parceria de ambos), Marcelo Jeneci (teclados em O atrito, de Curumin), Rico Dalasam (voz em Tramela, parceria sua com Curumin), as crianças Bento (sobrinho), Benedito e Rubi Assumpção (filhos do artista, vozes em Descendo, de Curumin), a rapper espanhola Indee Styla (voz em Boca cheia, parceria sua com Curumin) e Andrea Dias, Anelis Assumpção, Iara Rennó e Max B.O. (vozes em Paçoca, parceria de Curumin com os convidados, que tem ainda o cavaquinho e percussão de Rodrigo Campos).

O projeto gráfico é de Ava Rocha (arte, foto, capa), cantora filha do cineasta Glauber Rocha, e Ciça Lucchesi. Na capa, Curumin tem um olho na boca, como se regurgitasse ao mundo o que vê, “porque a boca fala aquilo do que o coração tá cheio”, como Veronica Ferriani adaptou a sentença bíblica para batizar um disco seu.

A boca, um dos “sete buracos da minha cabeça”, como enumerou Caetano Veloso em A tua presença morena, aparece constantemente neste novo trabalho de Curumin: “Dançando no beiço da boca da noite/ cai bem, cai bem” (em Bora passear, de Curumin, música-convite que abre o disco), nos títulos de Boca pequena parte 1 (“Corre a boca pequena/ a boca pequena/ a boca pequena”) e 2, Prata ferro, barro (de Curumin: “caio na boca do dia/ um bafo quente me engole”), Boca de groselha (de Curumin: “Boca de groselha/ me fala besteira”) e Boca cheia (“O recheio da sobremesa/ escorre pelos cantos de sua boca cheia”).

O cantor, compositor e multi-instrumentista em foto de Ava Rocha

Se Caixa preta, faixa de JapanPopShow [2008], sobre escândalos envolvendo malas e o rabo preso da indústria da notícia (é possível falar em empresas jornalísticas em tempos de “pós-verdade”?), segue atualíssima, Curumin, que em Boca assina as músicas de sua autoria com seu nome de pia, Luciano Nakata Albuquerque, volta ao tema, em Boca pequena parte 1: “Paletó, cordão de ouro/ amuleto e maleta recheada/ tá firmado o acordo/ […]/ entre o trono de rei/ e o banco dos réus/ passeia o neo coronel/ cheio de falsas bandeiras/ apertando maços de garoupa na carteira/ diabinho batucando no ombro/ ele samba na cara da sociedade”.

Artista antenado, Curumin traz mensagens políticas em seu disco, sem soar panfletário. Em Trecho de “O burguês que deu errado” o texto enfrenta machismo/misoginia, racismo e homofobia: “eu sou homem, branco e heterossexual. Teoricamente isso faz de mim um bosta”.

Em Paçoca lembra dos que têm fome: “Bota água na panela/ abre a tampa da cabeça/ que o guisado das ideias/ mata a fome do planeta// a barriga tá roncando/ mais que uma cuíca velha/ osso duro, samba torto/ e as cadeira quase quebra”, diz a letra.

Num país em crise, onde arte às vezes é tida como artigo de luxo, já que comer, necessidade básica, é prioridade, a música de Curumin é alimento necessário. Sustança para o corpo dançar, a alma transbordar e a boca cantar junto.

Ouça Boca:

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