Biografia joga luz sobre vida e obra de Clementina de Jesus 30 anos após sua morte

[O Imparcial, ontem]

Quelé, a voz da cor: biografia de Clementina de Jesus acompanha a trajetória da cantora, ex-empregada doméstica, descoberta por Hermínio Bello de Carvalho, produtor de quase todos os seus discos, aos mais de 60 anos

Quelé, a voz da cor: biografia de Clementina de Jesus. Capa. Reprodução
Quelé, a voz da cor: biografia de Clementina de Jesus. Capa. Reprodução

Nada acontece por acaso e o encontro de Clementina de Jesus com o poeta, compositor e produtor Hermínio Bello de Carvalho transformou a então empregada doméstica em cantora popular. Transformar é modo de dizer: Quelé nasceu artista, porém ouvir seu canto único era privilégio de gente próxima, inclusive quem não valorizava seu trabalho, exceto o de cozinhar, lavar e passar.

Caso de sua patroa, que sempre debochava quando ouvia Clementina cantando entre os afazeres, e tampouco aceitou o pedido de demissão quando, estimulada pelo sucesso da estreia e confiante no produtor que passaria a chamar de filho, resolveu dedicar-se integralmente à carreira artística. Nem com Clementina deixando sua filha no posto que outrora ocupava.

Nada acontece por acaso e o encontro de Felipe Castro, Janaína Marquesini, Luana Costa e Raquel Munhoz na faculdade de Jornalismo da Universidade Metodista de São Paulo deu neste quarteto, que em vez de tocar rock, escreve biografia. De partideira: Quelé, a voz da cor: biografia de Clementina de Jesus [Civilização Brasileira, 2017, 364 p., R$ 49,90] esmiúça competentemente vida e obra desta cantora única.

A biografia tem início justamente no encontro entre Clementina e Hermínio. Ele a havia visto pela primeira vez em 1963, durante os festejos de Nossa Senhora da Glória, santa de sua devoção. A timidez do poeta adiou o encontro, que se daria no ano seguinte, na Taberna da Glória, que dá nome a Taberna da Glória: mil vidas entre os heróis da música brasileira [Saraiva, 2015, 208 p.; R$ 49,90], em que Hermínio conta, ao longo de mais de 20 deliciosos textos selecionados por Ruy Castro, seu convívio com diversas personalidades da MPB, muitos produzidos por ele em shows e discos.

Clementina de Jesus estrearia em um palco em 1964, no espetáculo O menestrel, produzido por Hermínio, acompanhada de músicos como o lendário César Faria – futuro integrante do Conjunto Época de Ouro, de Jacob do Bandolim, e pai de Paulinho da Viola –, além do maranhense Turíbio Santos, que se tornaria um dos violonistas mais importantes do mundo.

A consagração definitiva não tardaria. Veio com o espetáculo Rosa de ouro, no ano seguinte, com produção e roteiro de Hermínio Bello de Carvalho – que assinaria a produção da quase totalidade de seus discos –, passando pelo repertório de diversos bambas, em que Clementina de Jesus era acompanhada pelo grupo Os Cinco Crioulos: Jair do Cavaquinho, Anescarzinho do Salgueiro, Nelson Sargento, Elton Medeiros e Paulinho da Viola. Não à toa o filho, como ela tratava Hermínio, declarou: “fico com a chamada suprema glória de havê-la descoberto. Ela é minha melhor obra, melhor que meus sambas e poemas”.

Clementina com Cartola e Dona Zica, em desfile da Banda de Ipanema. Foto: Alberto Ferreira
Clementina com Cartola e Dona Zica, em desfile da Banda de Ipanema. Foto: Alberto Ferreira

Quelé, a voz da cor tem unidade, sendo impossível distinguir qual dos quatro autores escreveu o quê, passando por glórias e perrengues da filha mais ilustre de Valença/RJ. Lembra suas incursões no universo do samba ainda nas décadas de 1920 e 30, quando conheceu figuras como Noel Rosa, Araci de Almeida, Cartola e Carlos Cachaça – com este último gravaria um de seus discos mais importantes: Clementina de Jesus – Convidado especial: Carlos Cachaça, de 1976.

O livro relembra a agenda insana de compromissos para uma senhora cantora (literalmente!) descoberta e projetada quando já contava mais de 60 anos de idade, entre apresentações, gravações de discos e participações em projetos de amigos, o casamento feliz com Albino Pé Grande, o sonho da casa própria, a vida simples e modesta de quem a fama nunca subiu à cabeça, viagens internacionais, sua importância para o resgate e a preservação de ritmos ancestrais do samba, de forte vínculo com a mãe África, o convívio com diversos artistas-devotos: Dona Ivone Lara, Martinho da Vila, Clara Nunes, Beth Carvalho, Carlinhos Vergueiro, Cristina Buarque, Alceu Valença e Milton Nascimento, entre outros.

Como muitos artistas no Brasil, Clementina de Jesus é menos conhecida e valorizada do que deveria. Darcy Ribeiro era secretário de Cultura do Rio de Janeiro em 1983, quando organizou uma homenagem a cantora no Teatro Municipal, então meca da música erudita, e percebeu o preconceito vigente, quando muitos tentaram impedir a apresentação de um espetáculo de samba protagonizado por negros. “Daqui a 100, 200 anos, os discos de Clementina continuarão vivos. Mas é agora que ela deve ser homenageada”, afirmou o antropólogo.

Clementina de Jesus é nome fundamental para a afirmação da cultura negra no Brasil, tendo sido quem melhor cantou os elos entre o país e a África ancestral. Publicado no ano em que se completam 30 anos de seu falecimento, Quelé, a voz da cor é uma contribuição indispensável para a preservação de sua memória e de toda a força e grandeza que representa para a cultura nacional.

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Veja Na linha do mar (Paulinho da Viola), com Clementina de Jesus:

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