O poeta faleceu na tarde de domingo (1º.), após quatro dias hospitalizado. Sepultamento será sábado (7), em Solentiname
DO LA PRENSA, EM MANÁGUA, NICARÁGUA
TRADUÇÃO DE ZEMA RIBEIRO

Ontem (1º. de março) faleceu o poeta Ernesto Cardenal, aos 95 anos, às 15h06, após quatro dias hospitalizado por problemas respiratórios. Seu coração falhou.
O corpo será velado na funerária Monte de los Olivos e amanhã (3) haverá uma missa na Catedral de Manágua. O sepultamento será em Solentiname, sábado (7). A notícia foi anunciada pela poeta Gioconda Belli.
Ordenado sacerdote em 1965, Cardenal havia sido suspenso “A divinis” em 1985 pelo Papa João Paulo II por divulgar a Teologia da Libertação e fazer parte do governo sandinista.
Em fevereiro de 2019, 34 anos depois e durante uma crise de saúde, a Nunciatura Apostólica na Nicarágua informou ao poeta sobre a absolvição concedida pelo Papa Francisco. “O Santo Padre concedeu com benevolência a absolvição de todas as censuras canônicas” impostas ao poeta, dizia a carta.
Foi visitado pelo bispo auxiliar da arquidiocese de Manágua, Silvio Báez, e o padre Edwin Román, que realizaram atos de comunhão e bênçãos espirituais.
A missiva enviada pelo Papa Francisco veio a reconciliar Cardenal com o Vaticano. Com seu efeito o núncio apostólico na Nicarágua, Stanislaw Waldemar Sommertag, celebrou a primeira eucaristia com o poeta no seu leito de enfermo no Hospital Vivián Pellas.
O poeta trapense [religioso pertencente à ordem de Trapa] disse no momento que recebia “amorosamente” do papa Francisco a absolvição da “censura canônica”.
Pegadas de Cardenal: o poeta, o sacerdote, o político
Quatro vezes indicado ao Prêmio Nobel: Em 2005 Cardenal foi indicado ao Prêmio Nobel de Literatura. Então em 2007 [foi indicado] pela Sociedade de Escritores do Chile, e o laureado poeta Raúl Zurita deu seu respaldo à candidatura.
Em 2010 foi proposto pela Sociedade Geral de Autores e Editores (SGAE) da Espanha. Mais de 150 poetas do mundo reunidos no VI Festival Internacional de Poesia de Granada, na Nicarágua, redigiram uma carta de apoio. A mais recente proposta ao Nobel foi realizada pelo ex-presidente uruguaio José Mujica, em 2018.
Obra premiada: Antes de receber o Prêmio Ibero-americano de Poesia Pablo Neruda (2009), Cardenal assegurava que era o poeta menos premiado. À época somente era possuidor do Prêmio da Paz do Comércio Livreiro Alemão (1980) e o Prêmio Ondas Mediterrâneas (2005).
Três anos depois sua vida e sua obra foram reconhecidas na Espanha. O poeta trapense foi agraciado com o Prêmio Rainha Sofia de Poesia Ibero-americana (2012). No ano seguinte o governo francês o condecorou com a ordem Legião da Honra em grau oficial.
E no fim de 2018 [foi agraciado] com o Prêmio Internacional Mario Benedetti, que o poeta dedicou à criança mártir Álvaro Conrado, assassinado durante os protestos contra o regime de Daniel Ortega. O México lhe rendeu homenagem em seu 90º. aniversário de nascimento, entre outros a que o poeta não pode assistir.
Teologia da Libertação
[Ernesto Cardenal] Realizou estudos de Literatura na Universidade Nacional Autônoma do México, depois em Nova York, Espanha, Suíça e Itália.
Participou da chamada Revolução de abril de 1954, contra o ditador Anastasio Somoza Debayle. Se retira da atividade política e ingressa na abadia trapense de Nossa Senhora de Getsemani (Kentucky, Estados Unidos).
Conhece seu maestro, o monge e escritor Thomas Merton, a quem o poeta considerou como seu “pai espiritual”. Em 1959 continua seus estudos de teologia em Cuernavaca, México.
É ordenado sacerdote em Manágua em 1965. Funda a comunidade de Solentiname. Leva vida monástica e promove as artes naif entre os ilhéus.
Escreve o celebrado livro O evangelho de Solentiname. Junto a Gustavo Gutiérrez, Leonardo Boff e Jon Sobrino, entre outros, promove a Teologia da Libertação.
Durante sua viagem ao Chile faz amizade com o presidente Salvador Allende. Crítico do somozismo, chega a militar na luta da Frente Sandinista de Libertação Nacional, promove a solidariedade com a revolução no México, América Central, Cuba, Alemanha e em outros países europeus.
Com o triunfo [da Frente Sandinista de Libertação Nacional] em 1979 é nomeado Ministro da Cultura, para ser então o primeiro a ocupar este alto cargo na Nicarágua. Promove a exteriorização e oficinas de poesia. Em décadas anteriores do somozismo só existiam extensões de cultura.
A repreensão de João Paulo e a suspensão “A divinis”: Em 1983, João Paulo II visita a Nicarágua. Em sua chegada ao aeroporto repreende-o drasticamente enquanto Cardenal permanece ajoelhado.
O Papa o questiona por divulgar a Teologia da Libertação e por integrar o governo sandinista. A notícia ganha o mundo. Fato que ainda é lembrado quando se menciona seu nome na imprensa internacional.
Em 1984, João Paulo II proíbe “A divinis” a Cardenal de exercer o sacerdócio se continuar como ministro da cultura do governo sandinista. Como os sacerdotes, seu irmão Fernando Cardenal, Miguel D’Escoto e Edgar Parrales. Em janeiro de 1985 é suspenso legalmente. Em 2014 o Papa Francisco ordenou a suspensão do castigo.
Três anos depois, em entrevista ao jornalista argentino Enrique Vázquez, disse que somente D’Escoto foi reconciliado com a Igreja. Mas que nunca lhe tiraram a suspensão. Em fevereiro de 2019, Cardenal recebe, através da nunciatura em Manágua, a carta de perdão papal.
Abandona seu cargo de ministro, depois a FSLN: Em 1987 abandona o cargo por fortes controvérsias sobre política cultural com a poeta Rosario Murillo, secretária geral da Associação Sandinista dos Trabalhadores da Cultura (ASTC), e atual vice-presidente da Nicarágua.
Continuando com seu trabalho cultural, nos anos 1990 funda com outros o Centro Nicaraguense de Escritores (CNE), promove os livros e suas esculturas. E no final daquela década, com o austríaco Dieter Schönherr, funda a Casa dos Três Mundos, em Granada.
Em 1994 se retira da Frente Sandinista em protesto contra o autoritarismo de Daniel Ortega e dá seu apoio ao Movimento Renovador Sandinista, onde figuram escritores de renome internacional como o ex-vice-presidente Sergio Ramirez, autor do livro Adiós muchachos, e a poeta Gioconda Belli, do livro El país bajo mi piel: Memorias de amor y de guerra. Nas últimas décadas têm sido críticos do binômio Ortega-Murillo.
“Sou um perseguido político, tenho uma condenação de cárcere de um juiz de Daniel Ortega e, ademais, o congelamento de minhas contas bancárias”, indicou em declarações à imprensa em meio a uma visita à capital mexicana por ocasião da publicação do terceiro volume de sua Poesia Completa (Universidad Veracruzana, 2008).
Em 2007 o poeta viajou ao México e conversou com subcomandante Marcos do Exército Zapatista de Libertação Nacional. Foi convidado para o XII Encontro Hispano-americano de Escritores Horas de Junho e ofereceu um recital de seu livro Polvo de estrelas, na Universidade de Sonora.
De suas obras poéticas e memórias
Nos dois últimos anos publicou, por ocasião de seus aniversários de 93 e 94 anos: Así en la tierra como en el cielo (2018) e Hijos de las estrellas (2019), ambos editados pela Anama.
Em sua juventude, em 1952, por seu poema Con Walker en Nicaragua, o poeta ganhou o prêmio do Centenário de Manágua. No mesmo ano fundou a editora El hilo azul.
Anos depois publica por diferentes editoras: Hora 0 (1957), Epigramas (1961), Salmos (1964), Oración por Marilyn Monroe y otros poemas (1965), Homenaje a los indios (1969), Oráculo sobre Managua (1973), Los ovnis de oro (1988), Cántico cósmico (1989), El telescopio en la noche oscura (1993), Poesia Completa Tomo I y II (2007), Versos del pluriverso (2012), Hidrógeno enamorado (2012) e Somos polvo de estrellas (2013). De suas memórias: Los años de Granada (2001), Vida perdida (2003) e La revolución perdida (2004).
Além de outros títulos com temas de religião, democracia e paz: Ansías y lengua de la poesía nueva nicaraguense (1948), Vida en el amor (meditaciones) (1970), El Envangelio em Solentiname (1975), La paz mundial y la revolución em Nicaragua (1981), Democratización de la cultura (1982) e Los campesinos de Solentiname pintan el Evangelio (1982), entre outros.
Cardenal também cultivou a escultura
De sua obra o poeta Julio Valle-Castillo disse que sua “arte provém do povo, passa pelas mãos de Cardenal e volta ao povo”.
Por seu lado, a historiadora da arte Maria Dolores Torres: “Ernesto Cardenal destaca a linha de figuração das peças, sua estilização e simplificação das formas naturais”.
Desde 1956 até uma recente exposição coletiva na galeria Códice em 2017 suas obras têm sido expostas na Unión Panamericana (Washington D.C.), Galeria Tagüe, Feira Mundial V Centenário, Sevilha (Espanha), Centro de la Raza, Seattle (Estados Unidos), Galeria Gerhard, Zurique (Suíça), Viena (Áustria), OEA (Washington D.C.), Museo Galería Josefina, Manágua e no Teatro Nacional Rubén Darío, na exposição Fin de Siglo.