
A expressão “mar de gente” não seria clichê para dar ideia do público que lotou a praça Nauro Machado, na Praia Grande, ontem (10) para ver Arnaldo Antunes e os shows que precederam o seu: as Caixeiras do Divino, Sulfúrica Bili, Phill Veras e o DJ Chico Correa tiveram, todos, ótima audiência, na primeira noite da edição 2015 do Festival BR135 – veja a programação completa no site.
O ex-Titãs subiu ao palco escoltado apenas por Chico Salem (guitarra e violão) e André Lima (teclado e sanfona), que lhe bastaram para um passeio por diversas fases de sua carreira solo, com pitadas de Tribalistas e da banda que fundou há mais de 30 anos.
Apropriadamente ele abriu o show com Fim do dia (Arnaldo Antunes/ Paulo Miklos). Os presentes à Nauro Machado tinham certeza do que seus versos diziam: o dia havia chegado ao fim e não havia o que lamentar, pelo contrário. Seguiram-se Sem você (Arnaldo Antunes/ Carlinhos Brown) – com o incidental de Preta pretinha (Luiz Galvão/ Moraes Moreira) – e Meu coração (Arnaldo Antunes/ Ortinho). “É o único herói ainda vivo. Todos os outros morreram de overdose”, ouvi alguém dizer na plateia. “Ou viraram reaças”, pensei.
Arnaldo Antunes estava à vontade, todo de preto, usando grandes anéis, dançando, dizendo da alegria de voltar à São Luís após tanto tempo. Depois de Contato imediato (Arnaldo Antunes/ Carlinhos Brown/ Marisa Monte) e Pedido de casamento (Arnaldo Antunes), lembrou o falecimento recente de Nauro Machado, louvando-o como grande poeta que era e recitou sua Odisseia: “Depois de nos cortarmos a nós mesmos,/ separando a cabeça do olho impuro,/ o olho dos membros e as pernas das mãos,/ depois de separarmos em nós mesmos,/ o que se come do que nos vomita/ por meio escuso de sombrio canal,/ depois de tudo em nós quebrado e inútil,/ na angústia em pelo de uma opaca terra,/ juntamos as partes e/ continuamos”.
Nunca é demais lembrar que Arnaldo Antunes é poeta, com diversos livros publicados. Mesmo na música, sua vertente mais conhecida, à surrada pergunta “letra de música é poesia?” a resposta, no caso de sua obra, é sim: suas letras são tão boas que sobreviveriam descoladas das melodias. As justas homenagens a Nauro Machado já haviam começado com a lembrança de Alê Muniz e Luciana Simões, o casal Criolina, idealizadores e produtores do Festival BR135, com o mestre de cerimônias Preto Nando e com a atriz Áurea Maranhão, a bordo de pernas de pau, atravessando o mar multicolorido e diverso de gente, recitando, em meio ao povo, trechos de poemas do poeta que deu nome à praça que abriga parte da programação do festival, como Pequena ode a Tróia e Câmara mortuária.
Mas voltemos à Arnaldo Antunes, que cantou por mais de hora e meia e deixou no público o gosto de quero mais. Depois do poema do maranhense ele cantou Saiba (Arnaldo Antunes): “saiba, todo mundo vai morrer/ presidente, general ou rei”. Que nos sirva de consolo.
Seguiram-se Invejoso (Arnaldo Antunes e Liminha) e Consumado (Arnaldo Antunes/ Carlinhos Brown/ Marisa Monte), cuja letra fala em “rádio sem jabá”, tema de palestra proferida à tarde por Patrícia Palumbo – por cujo Vozes do Brasil Antunes já foi entrevistado – na programação do Conecta Música, evento de formação, paralelo ao festival.
Arnaldo elogiou o trabalho de Chico Salem, que está lançando disco solo e deixou-o no palco para imediata empatia do público. Ele cantou Real demais pra você (Chico Salem), música animada de letra galhofeira: fala de uma usuária de redes sociais cuja vida real é diferente da postada no facebook, tuiter e instagram – qualquer semelhança é mera coincidência: a plateia ria e cantava junto, empunhando celulares que não pararam de fotografar e filmar o show inteiro. Ou, às vezes, apenas cabeças e mãos pra cima à sua frente.
Dos discos mais recentes, ele fez blocos. De Disco, cantou Muito muito pouco (Arnaldo Antunes) e Ela é tarja preta (Arnaldo Antunes/ Betão Aguiar/ Felipe Cordeiro/ Luê/ Manoel Cordeiro); de Já é, Põe fé que já é (Arnaldo Antunes/ Betão Aguiar/ André Lima) e Naturalmente, naturalmente (Arnaldo Antunes/ Marisa Monte/ Dadi).
“Essa é pra lembrar de quando a gente tava dentro da barriga da mamãe”, disse antes de cantar Debaixo d’água (Arnaldo Antunes). Depois de Se tudo pode acontecer (Arnaldo Antunes/ Alice Ruiz/ Paulo Tatit/ João Bandeira), Velha infância (Arnaldo Antunes/ Carlinhos Brown/ Davi Moraes/ Marisa Monte/ Pedro Baby) emocionou grande parte do público, que ajudou Arnaldo a cantar o hit tribalista. Não vou me adaptar (Arnaldo Antunes) atendeu aos deselegantes e insistentes gritos de “Titãs!” ouvidos desde o início do show.
“Tudo fica mais bonito com vocês cantando”, agradeceu ao deixar o público cantar sozinho os versos finais de Socorro (Arnaldo Antunes/ Alice Ruiz): “qualquer coisa que se sinta/ tem tanto sentimento/ deve ter algum que sirva”. Com Passe em casa (Arnaldo Antunes/ Carlinhos Brown/ Marisa Monte/ Margareth Menezes), outro vibrante hit tribalista, o trio deixou o palco.
Os gritos de “mais um” demoraram um pouco mais: cigarro entre os dedos, Arnaldo Antunes, ao voltar do camarim, posou para selfies com a equipe de produção, técnicos e quem mais estivesse na lateral de acesso ao palco. No bis, atacou de Envelhecer (Arnaldo Antunes/ Marcelo Jeneci/ Ortinho) e O pulso (Arnaldo Antunes/ Marcelo Fromer/ Toni Bellotto).
Shows como o de Arnaldo Antunes e festivais como o BR135 estão aí para provar que São Luís ainda pulsa. Seu coração de paralelepípedos bombeou emoção aos de carne e sangue ali presentes.