O nosso Ditinho, ai que dó. Já estava no fim. Você também achou? Meio surdo, asmático, a voz era um sopro lá no fundo. Na rua, de repente se chegava por trás, me pegava no braço:
– Quero uma escova e pasta. Para mim você compra?
Cada vez mais rouco. Íamos à farmácia. Me dava o dinheiro, eu falava com a balconista. Tanta pena do camaradinha. Sabia pedir duas coisas, apenas com gesto: cafezinho (erguia o indicador bem torto) e cigarro (apontava a marca, fumante desgraçado). Contanto que não falasse, era incapaz.
O último rebento fanado da sexta ou sétima união incestuosa de primo com prima. O famoso louquinho da tradicional família curitibana que, ao chegar visita, é fechado no porão.
Além da mãezinha, só uma mulher ele amou na vida – a sua grande paixão secreta. Uma artista americana de cinema, célebre na época. Não é que esqueci o nome? Ditinho escreveu-lhe mil e uma cartas de amor desesperado, mesmo em português. Propunha casamento, pacto de morte, fuga para Antonina. Sob registro, mandou seis fotos coloridas: de cachimbo, lendo uma revista, todo risonho, de perfil. Depois a impressão da mão, assinalada a longa linha do amor. Por fim o contorno em vermelho do troféu de Mister Curitiba – duas vezes ampliado. Em resposta chegava do estúdio sempre o mesmo retrato em branco e preto.
Quando ela noivou, o nosso herói surgiu cambaleante no bar:
– Viu só? O que a bandida fez?
Bebia rum puro, de um gole só. Logo a testinha perolada de suor frio. Escorregava da cadeira, em coma alcoólico – os amigos o assistiam, não morresse ali mesmo. Como explicar à santa mãezinha?
Na hora em que a atriz casava, ele rabiscou bilhete de despedida e engoliu setenta e seis comprimidos de vários tamanhos e cores. Dormiu dois dias e três noites, com a mãe e a irmã se revezando na cabeceira. Abriu o olhinho raiado de sangue, a velha começou:
– Ditinho, por que…
– O Ditinho morreu.
Durão, exigiu que o tratassem pelo nome, cultivou tossinha nervosa e bigodinho feroz.
– Ah, doce inimiga. Para você amor é alô, um beijo e adeus?
Tinha razão: seis meses não durou o casamento. Quando a traidora se separou, ele devolveu o desprezo:
– Viu só? Aqui do gostosão não esquece.
Quase surdo, maníaco por jazz e ópera de Verdi. Um agudo desafinado, exibia furioso o dentinho de ouro:
– Viu? Viu só? – saltitando na pontinha do pé. – Esfolo vivo. E bebo o sangue.
Com aquele tamaninho e tudo, aquela mãozinha peluda, tocava piano. E não tocava mal. Ofendido quando eu pedia marchinha carnavalesca. Baixando a tampa, sacudia os bracinhos:
– É um selvagem. Não tem gosto.
No fundo da livraria o ronronar do velho gato pesteado e já sabia – era ele, folheando uma revista de cultura física, os guapos rapagões. Eu me inclinava para distinguir o fiozinho de voz:
– Já não tenho amigo. Só amante.
O seu querido bofe, que recebia na sala de música. Cabecinha retorcida para o outro lá no alto. Apresentava-o como discípulo, fanático dos recitais de ópera. Recitais ou inocentes bacanais? Quem há de saber?
Ali o piano, os mil discos preciosos, as grandes caixas de som, o sofá de veludo vermelho. Seu ídolo era um negro possesso de álcool e droga. Em surdina perseguia no pianinho a alucinada clarineta.
– Olhe, que beleza. Nem uma nota em falso. Ínfimo burocrata, esquecido na sala escura do sótão. Entre os processos empoeirados, espirrava e dedicava-se a palavras cruzadas. Se você passava no corredor, pronto escondia na gaveta o caderninho.
Desligado da conversa, suspirava fundo, olhinho perdido:
– Que será o meu canarinho está fazendo?
Odiava o irmão mais velho:
– Bêbado. Desgracido. Quer vender a casa. E me deixa na rua.
Só restavam no antigo sobrado ele e a irmã solteirona.
– Minha segunda mãe. Quem sabe até minha mãe?
Ela que o defendia contra a cidade maldita. A salinha sagrada de música, o branquinho nas refeições, a moela, o coração e a sambiquira.
– Passe o branquinho, Maria.
O vício do arroz lavado em sete águas.
Não é que a irmã faltou de repente? Finou-se dormindo, um sorriso pálido na boquinha torta. Os amigos tremeram: Que seria do Ditinho?
No casarão agora ele e a velha criada. Quase noite, voltou do enterro. Sentado no caixote de lenha, soluçava em desespero. Subiu penosamente os degraus:
– Não me incomode. Vou descansar.
Pouco depois chegou o discípulo dileto. Ou querido bofe. Loiro alto, louco por blue. A negra arrastou-se pela escada, abriu a porta do quarto – ele sonhava e gemia. No pijama azul de bolinha. Uma gorda lágrima ali no canto do olho. Sacudiu-o de leve.
– Credo, Biela. Que foi?
O novo parceiro lá estava.
– Espere um pouco. Já vou.
Desceu no roupão florido de seda, lencinho no pescoço. Ofegava, sibilante, o cabelo ainda molhado para assentar o remoinho. Pintava-o bem preto. Escolheu um disco do grande Nazareth.
– A marcha fúnebre de Maria.
Violão, flauta e cavaquinho, como ele apreciava. Sem sossego, andando inquieto pela sala.
– Tanto calor.
Rebentou o botão do casaco, aflitinho.
– Ai, meu Deus. Que agonia.
Abanava-se com a revistinha. A mão crispada no lenço, abriu a boca, rolou de costas no tapete.
O outro saiu correndo:
– Alguém acuda. Chame o doutor.
Era tarde, mortinho para sempre: um simples retrato desbotado em branco e preto. E o violão do chorinho nunca mais foi brejeiro.
[Dalton Trevisan. In: Meu querido assassino. Editora Record, 1983, páginas 76-80]
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